domingo, 26 de agosto de 2007

Entrevista: Ivete Sacramento


A ex-reitora da Universidade Estadual da Bahia fala sobre educação, racismo e sua indicação para o Prêmio Claudia

Ivete Sacramento nasceu no bairro da Cidade Nova, periferia de Salvador. A independência e a simpatia dessa mulher de 54 anos e mãe de 3 filhos convivem com o seu lado combativo. Pelas suas convicções, já foi acusada de autoritarismo. Sempre estudou em escola pública e aprendeu a tocar acordeon aos 11 anos, com uma tia. Queria ser professora, atriz ou enfermeira, mas a Educação revelou-se como a maior das suas vocações. Aos 19 anos já era professora em Ubaitaba (450 km de Salvador), tudo que mais sonhava na época. Mas foi muito além disso ao fazer Mestrado em Educação na Université du Quebec a Montreal, no Canadá, tornando-se, em 1998, a primeira reitora negra de uma universidade brasileira. Seus dois mandatos na Universidade Estadual da Bahia (UNEB) foram marcados pela implantação da política de cotas para afro-descendentes, despertando reações contrárias e suscitando polêmicas. Já recebeu 25 prêmios e títulos concedidos pela sua atuação como educadora preocupada com a inclusão social do negro e dos seus descendentes. Recentemente tornou-se uma das 15 finalistas do Prêmio Claudia, que através de uma eleição nacional destaca as personalidades femininas que com ações afirmativas fazem a diferença na vida dos brasileiros. Ivete está indicada na categoria Políticas Públicas e é a única negra entre as mais votadas de uma lista de 250 mulheres de todo o Brasil.


Leia a entrevista exclusiva ao Portal Salvador Negroamor.

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Portal SNA – Segundo Rubem Alves se o professor não mudar sua mentalidade, mesmo com toda tecnologia, jamais teremos qualidade na educação. Na sua opinião, qual a função de um educador hoje?
Ivete Sacramento - Acredito que todo mundo pode modificar as coisas, nossa passagem pela vida tem um sentido. Quando passo por um lugar eu tenho um objetivo: é despertar em alguém o seu um potencial transformador. Minha função como educadora é essa. Em qualquer lugar que eu esteja, estou sempre com o olhar do educador, aquele que transforma para melhor. Hoje, o educador negro tem uma responsabilidade ainda maior, a partir da obrigatoriedade da Lei 10.639 [lei que obriga o ensino de História afro-brasileira e africana nas escolas públicas e privadas]. Não devemos trabalhar apenas a questão do folclore e da religiosidade negra, é preciso contextualizar as disciplinas para mostrar aos alunos a importância da África nas nossas vidas. É preciso muito cuidado para não se perpetuar o racismo dentro da sala de aula, quando por exemplo um aluno tem uma atitude racista com o colega.


SNA – Na sua época de estudante da UFBA, no início dos anos 70, quantos colegas negros existiam na sua sala?
IS - Em cursos como Letras, Pedagogia, na área de Humanas em geral, o negro até consegue ter acesso. Já na área de Saúde e Exatas são as que têm menor quantidade de negros, porque a concorrência é alta e a formação exigida é maior. Na minha turma de quarenta alunos, só havia uns cinco, mas de negra mesmo só tinha eu.


SNA – Existe algum caso em que a senhora tenha sido discriminada?
IS – Existe e foi na época da faculdade. Eu sempre fui muito estudiosa, sempre gostei de ler. Como eu tinha facilidade de escrever, eu fazia os trabalhos de equipe sozinha. Na minha equipe havia uma loira, da alta sociedade, que fez um trato comigo: “vou comprar todos os seus livros, mas você vai fazer todos os meus trabalhos”. O professor passava a bibliografia e ela na dizia na hora, “deixa que eu compro”, [risos]. Eu fazia até as provas. Teve uma de Literatura que fiz para mais três colegas. Eu tirei a menor nota e a loira tirou a maior. O professor começou a elogiar a análise dela, dizendo que nunca havia visto um trabalho tão bom como aquele. A coisa foi tão gritante que a minha colega loira se levantou e disse, “professor, o senhor está cometendo uma grande injustiça, quem fez minha prova foi Ivete”. Hoje em dia, quando ele passa por mim, se derrete dizendo “minha reitora, eu nunca tive uma aluna como essa”... [risos]. Aquilo foi uma forma racismo, ele deu uma nota baseada apenas na aparência, porque para ele eu não era capaz de produzir um texto daquele. Sempre dou esse exemplo nas minhas aulas para mostrar aos meus alunos as várias formas que o racismo sutil assume.


SNA – Sua gestão como reitora da UNEB ficou marcada pela implantação da política de cotas. Como se deu esse processo?
IS -
Vivíamos o contexto do Ano Internacional de Combate ao Racismo que propunha medidas de combate ao racismo, à discriminação, à xenofobia, além da possibilidade de sediar um encontro aqui no Brasil. O governo, na época, ficou receoso em “mostrar” para o mundo uma imagem de país racista e recusou a proposta de sediar o evento. O encontro foi transferido para Durban, na África do Sul, e, em função disso, os movimentos negros passaram a pressionar o governo brasileiro. Para dar uma satisfação, o governo nomeou um comitê nacional para preparar a posição do Brasil em relação a essa conferência. Representando a Bahia fomos eu, Dom Gílio e Mãe Stella. Eu assumo todos os ônus da implantação das cotas. Na época, em 2001, fui tida como autoritária, pois não dei tempo para que a proposta fosse mais discutida no âmbito da universidade. Ninguém sabia de fato o que eram ações afirmativas, o que eram medidas de reparação e porque estávamos buscando pôr em prática as cotas. Para respaldar a nossa intenção, uma pesquisa havia sido divulgada pelo IPEA [Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada], que apontava para aquilo que já sabíamos ao andar pelos campi da UNEB: no Brasil a maior parcela de analfabetos era negra, o jovem negro estava concentrado na escola pública desqualificada e, pior, o acesso do negro à universidade era menos de 1%. Tudo isso me incomodava e mandei fazer uma pesquisa para o vestibular de 2002 quanto à cor dos candidatos. Num universo de 55 mil vestibulandos, apenas 1.500 se declararam negros, dos quais apenas 116 foram aprovados. Colocamos a proposta para votação de uma comissão acadêmica, composta por 35 membros, e somente tivemos apenas três abstenções. A UNEB foi a primeira a implantar efetivamente ações afirmativas por iniciativa própria, ao contrário das universidades do Rio de Janeiro, que foram obrigadas por leis. Hoje, não se discute as cotas, a sociedade já está convencida de que os cotistas têm desempenho acadêmico superior aos não-cotistas. Já estamos formando as primeiras turmas e vamos começar a fazer uma pesquisa com os egressos. Na UNEB o sistema já está institucionalizado, tanto que está sendo implantado o sistema de cotas para os descendentes indígenas, que também é válido, embora os índios da Amazônia já tenham garantido por lei o ingresso imediato à universidade, mas pouca gente sabe disso.


SNA – A senhora já recebeu cerca de 25 prêmios e títulos pela sua atuação como educadora. Como recebeu sua indicação para o Prêmio Claudia?
IS -
Depois que completei os meus dois mandatos de reitora, em 2005, eu estava numa fase de querer apenas relaxar. Foram 35 anos de trabalho na Educação e eu também precisava descansar da mídia. Me afastei de tudo e dei um tempo para mim mesma. Fui curtir meus amigos, viajar um pouco, não queria saber de nada sério. Fiquei assim até o ano passado quando passei a me preocupar com o que iria fazer depois que se encerrou um ciclo de minha vida e queria um outro ciclo mais tranquilo, sem tanta responsabilidade. Então, o telefone toca e era da Revista Claudia. Eu disse “minha filha, eu não quero comprar revista nenhuma [risos]”. Ligaram várias vezes até me convencer de que eu era uma das 15 finalistas do prêmio. Ainda reclamei: “eu, finalista?! E quem botou meu nome nessa lista? [mais risos]”. Depois que saiu a indicação na revista as pessoas começaram a me ligar: umas me parabenizando, outras desdenhando do prêmio, por se tratar de uma revista feminina, e para alguns mais ortodoxos, voltada para as mulheres brancas. Acho que justamente por isso, por eu ser a única negra entre as 15 indicadas, que eu entendo a importância desse prêmio. Além do mais, o motivo pelo qual eu fui indicada: por ter sido a primeira reitora negra e, principalmente, por atuar numa área que dá origem a todo desenvolvimento desse país. Acho que não podemos ter preconceito com uma revista voltada para as classes mais altas, já que no futuro quando alguém folhear a revista, eu posso servir de exemplo para mulheres que possam se dedicar à educação ou a qualquer outra área e mudar a realidade do Brasil.


SNA – A senhora tem ambições políticas?
IS -
Nunca tive, embora seja assediada por alguns partidos. Por incrível que pareça, eu sou cobrada quase que diariamente por diversas pessoas que me perguntam porque não me candidato. Para você ter idéia, a pressão não tem sido apenas na Bahia, mas em termos de Brasil. Pessoas envolvidas com o movimento negro de diversos estados cobram isso de mim. Eu tenho resistido porque nunca tive essa ambição, eu sempre quis ser professora. Cheguei a ser reitora, mas isso nunca foi minha meta. O problema é que sempre fui muito independente e nenhum partido representa minha causa. Nenhum governo que eu conheça, por mais interessado que seja, vai creditar à Educação a prioridade que lhe é devida, vai creditar à causa de combate ao racismo, à implantação e implementação efetiva e corajosa das ações afirmativas do que jeito que eu penso. Então eu vou me frustrar. Eu não quero ser uma secretária ou ministra da Educação pois, ou se dá prioridade com dinheiro e carta branca para se fazer o trabalho que tem de ser feito, ou todos os secretários vão ser frustrados e vão decepcionar. Um exemplo disso é Cristóvão Buarque, que tem as melhores intenções, os melhores projetos e se indispôs com o presidente Lula por falar a verdade.


Foto: Revista Claudia

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