terça-feira, 30 de outubro de 2007

Literatura: José Carlos Limeira

Em entrevista exclusiva, o escritor fala da sua infância, trajetória literária e da sua poesia de resistência

Com mais de 35 anos de carreira, José Carlos Limeira, 56, é um dos autores nascidos em Salvador de maior destaque dentro da comunidade negra e dos ambientes acadêmicos do Brasil e do Exterior. Estreou com o livro de poesias “Zumbi...dos” em 1971 e em seguida vieram “Lembranças” (1972), O Arco-íris Negro (1978), Atabaques (1983) e “Black Intentions” (2003) inédito no Brasil. Está finalizando “Malakê”, que deverá ser lançado em 2008. Colaborador dos Cadernos Negros desde 1980, o escritor faz parte dos Conselhos Editoriais do Jornal Multicampi da Revista do Cepaia, além de ser membro do Conselho da Your World, Organização Internacional de Educação e Assessor Técnico da Universidade Estadual da Bahia. Nascido no bairro de Nazaré, com origens no Recôncavo Baiano, Limeira concebe uma poesia na qual “percebemos uma sintonia com a poesia contestatória e palmarina de Solano Trindade”, segundo a Mestra em Teoria da Literatura, Zoraide Portela Silva. Nesta entrevista ao Salvador Negroamor, o autor baiano fala da sua vida, do seu trabalho e de questões ligadas à militância negra.




*



SNA – Você utiliza muito da sua biografia nos seus poemas. Quais as suas lembranças de sua infância?
JCL – Boa parte delas já foram publicadas. Tenho um poema chamado “Ecos”, em que faço uma viagem no tempo, pela antiga Salvador. Já “No Corredor da Lapinha” busquei registrar as figuras e as particularidades desse lugar que me marcou profundamente. Não posso falar em infância miserável (porque tem aquela coisa do chororô de ser pobre quando criança), já que tive uma vida muito tranqüila. Meu pai depois que passou a ser Prático [condutor de embarcações em portos], progrediu muito e já naquela época, em 1952, viajávamos de avião para o Rio de Janeiro, visitar os parentes. Não segui a profissão do meu pai porque acreditei que ser Engenheiro Mecânico fosse melhor e também havia uma preocupação muito grande de minha mãe em relação ao perigo da vida no mar. Além disso, havia toda aquele ranço discriminatório em relação aos trabalhadores do porto. Então, não nasci em berço de ouro mas não tive dificuldades.

SNA – Como se deu seu primeiro contato com a Literatura?
JCL – Eu queria ser Oficial da Marinha e já no Colégio Naval comecei escrevendo cartas, a pedido dos meus colegas, principalmente os veteranos, que queriam impressionar as namoradas. E a coisa foi virando meio que “Central do Brasil”, pois eles gostaram e logo todas as namoradas dos praças passaram a receber as tais cartas. Houve um caso de um colega que estava vivendo um romance tórrido com uma moça e quando eles brigaram certa feita, ele revelou: “olha, nenhuma daquelas cartas fui que escrevi, foi um calouro lá que eu mandei ler suas cartas e responder”. E ela respondeu: “Que pena, mas eu estava mesmo apaixonada era pelo texto” (risos). Então comecei a fazer parte da Associação Fênix Naval, na qual se reuniam os interessados por Literatura, fazíamos recitais para as normalistas, isso no Rio de Janeiro. Foi lá que conheci um dos grande escritores, pouquíssimo conhecido, o Luciano de Oliveira. Foi ele quem me disse que eu era poeta.

SNA – Você atua como escritor engajado desde os anos setenta. Que momentos da sua carreira foram os mais marcantes?
JCL - Houve um evento organizado por professores e pesquisadores da Universidade de Tulsa, em Oklahoma [Estados Unidos], em 2003, que particularmente foi muito importante para mim. Eu estava vaidosamente pesquisando sobre mim na internet e descobri que um certo Bruce Dean Wyllys havia escrito sobre o meu trabalho. Daí entramos em contato, estabelecemos uma amizade e ele me convido como escritor de Língua Portuguesa juntos com outros cinco autores. Dois de Língua Inglesa, dois de Espanhol e um de Francês. E foi muito engraçado ver que os intelectuais de países mais desenvolvidos costumam ler seus textos e publicações com uma certa isenção. E enquanto eu fazia a leitura com toda carga de emoção que um poeta negro brasileiro tem, diante de umas duas mil pessoas, o Wyllys ia fazendo a tradução para o inglês. Mas ficou uma coisa muito boa, porque ele fazia todo o gestual, encarnando o espírito da minha poesia e o mais interessante foi ver o contraste daquele homem branco de olhos azuis emocionado com as palavras que falavam sobre a negritude. E aí a platéia aplaudiu de pé, todo mundo festejou e minhas pernas começaram a tremer (risos). Nesse dia eu esgotei uma edição de um livro chamado “Black Intentions”, lançado nos Estados Unidos justamente para esse encontro e hoje ele está sendo usado nas aulas de português da Universidades de Maryland e da Universidade de Vanderbilt.

SNA – Mas você também pode ser considerado um autor de contramão quando se trata de figuras históricas...
JCL - Tenho um poema que desmistica antigos medalhões da História do Brasil como Domingos Jorge Velho, o bandeirante, que no meu entender, depois de estudado e revisado, deveria ser visto como assassino e não como herói. Um cara que voltou de uma de suas expedições exibindo três mil orelhas de negros e se vangloriando do seu “feito”.

SNA - Seu trabalho é mais reconhecido no exterior do que no Brasil?


JCL - Houve um momento em que na Alemanha conheciam mais o Limeira do que no Brasil. Em 1988, comemorando o centenário da Abolição, o governo brasileiro fez uma intensa propaganda lá fora quanto à questão da democracia racial vivida aqui. E uma ex-professora da Ufba, que na época morava na Alemanha, Ana Parente Cunha, publicou através de uma editora chamada Diá, um livro chamado “Schwarze Poesie” [poesia negra] no qual vários autores expressaram suas vivências e expectativas dentro de um país que não se dizia racista, o que ia na contramão da propaganda governamental. Vários trechos do livro foram encenados no teatro e como a Alemanha tem muitas redes estatais de televisão, depois eu recebi uma resenha de Ana me informando que esse material atingiu um público de mais de 20 milhões de pessoas. Nunca tive a menor expectativa de ter um público como esse no Brasil... por isso eu costumo dizer que sempre passo por momentos mágicos na minha vida e qual não foi minha surpresa quando um dia eu estava na Ufba, a convite da professora Doralice Alcoforado, quando me entregaram uma importância referente ao meu texto, que havia se transformado num disque-poema na Alemanha, onde as pessoas pagavam para ouvi-lo. Eu fiquei duplamente feliz: pelo respeito que eles têm pela cultura, pelos escritores e outra por ter sido escolhido para ser estudado por eles. Isso no Brasil seria impossível. Eu acho que a gente ainda não tem educação para a música, para a poesia, para uma série de expressões.

SNA - Existe uma Literatura Negra atuante no Brasil?
JCL - Existe sim e as pessoas costumam questionar se Literatura tem cor ou não. No meu entender, o que é produzido pelos afro-descendentes tem uma uma importância fundamental como uma literatura de resgate de nossas reais tradições, como um espaço de respeito e dignidade para o negro dentro da sociedade brasileira. Ela é necessária porque a Literatura sempre foi um reduto branco. Tudo que era produzido pelo negro era de segunda qualidade ou considerado folclore e não faziam parte dos “padrões literários”. Pois bem. Até os nossos grandes autores são caiados ou esmaecidos quando produzem algo maior. Vide os exemplos de Machado de Assis, o próprio Cruz e Sousa e o recém-descoberto Lima Barreto, um dos mais discriminados pelos intelectuais brasileiros. Contemporâneo de Machado, Lima era cáustico na crítica às relações sociais e inclusive falava na própria discriminação sofrida, quando foi impedido de colar grau na faculdade politécnica e quando passou por uma série de percalços pelo fato de ser negro. Apesar dele ter uma obra tão pujante quanto à do nosso querido Machado, nunca foi adotado como cânone pela Academia e só foi redescoberto e valorizado muito recentemente. Existem outros, como Paula Brito e Solano Trindade que não apareciam nos compêndios literários. O Brasil ainda tem muita resistência para aceitar o negro além do sambista, do jogador de futebol ou que ele é muito bom de rebolado. Eu acho que tínhamos de pôr mais luz na obra de autores contemporâneos, que terminam até desistindo do fazer literário porque não têm um reconhecimento. E muitos autores capazes estão se perdendo pelo caminho. O problema é que a nossa Literatura toca em questões dolorosas e as pessoas preferem que se omita a realidade de um país que não é democrático nem é racialmente justo. É uma Literatura de denúncia, que se torna um instrumento de luta quando pega um garoto do hip-hop ou grafifeiro e dá informações para ele.

SNA - E qual o panorama da Literatura Negra na Bahia atualmente?
JCL - Quem deu maior visibilidade ao nosso trabalho nos últimos trinta anos foram os Cadernos Negros, que reúnem escritores de todo o país, que bancam suas próprias publicações. Cada vez que sou publicado neles, por exemplo, eu invisto cerca de 300, 400 reais e isso nos dá uma total liberdade de expressão, sem ficarmos sob a tutela de uma editora. Os textos publicados nos Cadernos são analisados por um Conselho Editorial que prima pela qualidade dos trabalhos. Os materiais panfletários não são aceitos, pois para isso existem os autores panfletários, que divergem da nossa proposta. A nossa literatura expõe certos pensamentos e certas vivências que a sociedade distante da nossa cultura já não pode mais deixar de experimentar, de perceber um outro país dentro do Brasil, que mesmo sem acesso a condições mínimas de educação, dignidade e sobrevivência continua construindo e levando para o mundo uma alegria, uma felicidade desconhecida do próprio Brasil. Aqui temos atualmente autores do porte de Jonathas Conceição da Silva, Osvaldo de Camargo, Landê Onawale, Sílvio Roberto. Temos ainda Hamilton Borges, dono de uma literatura de “pegada” e Nelson Gonçalves Maca, professor da Universidade Católica de Salvador e que mostra a literatura produzida pelos afrodescendentes dentro da Academia. As mulheres negras também estão produzindo, como Nivalda Costa e Aline França, autora conhecida na Bélgica com a obra “A Mulher de Aleduma”.

SNA - Você acredita que o ambiente acadêmico seja mais propício à produção literária?
JCL – Tenho tido uma boa relação com a Academia, mas não acredito nisso. Ainda existe a questão dos cânones, a questão dos moldes mais formais. A aceitação e o reconhecimento da produção negra é muito maior em guetos literários, por onde circulam os autores e os leitores. Eu já tive a honra de chegar em alguns lugares e perguntar se conheciam algum poema meu e a platéia reagir positivamente.

SNA – Quem são os autores de maior influência na sua obra?
JCL - Além de Cruz e Sousa e Luís Gama, um poeta e contista contemporâneo chamado Cuti, dono de uma extrema qualidade no verso e ao mesmo tempo em que tem uma técnica apurada. Gosto muito do texto de José Carlos Capinam e do meu grande amigo Ildásio Tavares. Também não dá para fugir dos clássicos, como Baudelaire... para construir as flores do bem tive que passar pelas flores do mal...(risos).

SNA – Onde é possível encontrar seus livros?
JCL – Não sei se felizmente ou infelizmente, mas estão todos esgotados (risos). O último foi lançado nos Estados Unidos, mas em alguns sebos talvez seja possível achar algum deles. Soube que num site de um sebo chamado Traça Virtual existem exemplares de “Atabaques”.

SNA – E a questão da sua religiosidade, qual a sua relação com o Candomblé?
JCL - Eu sou Ogã Tanundê do Terreiro Rumpaime Aiono Ontoloji, que fica no Alto da Levada, em Cachoeira. Em Jeje “Tanundê” significa uma espécie de relações públicas do terreiro. A Nação Jeje talvez esteja ameaçada de extinção porque todo ciclo de festas, todo ciclo de iniciação é muito longo, muito pouco divulgado e a maioria das pessoas só são iniciadas quando se aposentam. As obrigações e a iniciação exigem seis meses dentro e seis meses fora do Terreiro, por isso estamos pensando numa reformulação nesses procedimentos. Precisamos dar uma atividade maior e preservar uma das nações mais ricas e também complicadas para se ter acesso.

Foto: Alex Rubinélio

sexta-feira, 26 de outubro de 2007

Brasil, África do Sul e Índia realizam mostra de manifestações culturais em Salvador


Artistas dos três países realizam encontro inédito para apresentações e oficinas de música e dança

Um encontro inédito está promovendo em Salvador a integração de artistas, grupos musicais e dançarinos de três dos mais importantes países em desenvolvimento no mundo: Índia, Brasil e África do Sul. O 1º Festival de Música e Dança IBAS acontece de 24 a 27 de outubro e programou além de shows com artistas locais, oficinas de percussão e dança abertas ao público. O evento é resultado de iniciativas por parte do Ministério das Relações Exteriores, que tem buscado uma aproximação cultural com países emergentes com culturas semelhantes às do Brasil.

Na tarde desta quinta-feira (25), o Passeio Público de Salvador serviu como palco para a apresentação do grupo Phambili Marimba, composto por nove percussionistas da África do Sul que além de ensinar às pessoas presentes danças originadas da Cidade do Cabo, ainda se apresentaram tocando ritmos africanos com elementos de jazz e música moderna. O resultado agradou ao público, que ao som das marimbas (instrumentos de percussão feitos de madeira), interagiu totalmente com os músicos. “A dança e o ritmo deles são parecidos com os daqui da Bahia, só que mais acelerado”, disse a estudante Rebeca Xavier.

Logo depois foi a vez do Sadhya, um dos mais tradicionais grupos de dança da Índia. Ao som das marimbas africanas, os dançarinos apresentaram a coreografia “Jogo de Dados”, uma performance que tem como maior referência formas artísticas indianas como o Kathakali (teatro), Chhau (arte marcial) e a dança contemporânea. Além das apresentações, os integrantes do grupo ministraram uma oficina de dança. “Vejo muita semelhança entre a capoeira e a nossa dança, percebi isso desde a primeira vez em que estive na Bahia, há nove anos”, declarou Santosh Nair, coreógrafo e fundador do Sadhya.

Linguagem Universal
O músico sul-africano Bongani Sotshononda, líder do Phambili Marimba, foi um dos artistas que mais se identificaram com o público. Conduzindo os passos dos alunos da oficina, a interação foi completa. “Sentimos que realmente a energia da Bahia é igual à nossa. Só tivemos dificuldade com o idioma, mas a música supera essas barreiras em qualquer parte do mundo”, disse. No próximo domingo (27) o público de Salvador ainda terá chance de ver as próximas apresentações dos grupos, com a realização de um grande show de encerramento no Largo do Pelourinho, a partir das 21 horas, com a participação de Margareth Menezes e do Olodum. O percussionista baiano Sérgio Otanazetra elogiou a iniciativa: “A música, a dança e o ritmo unificam as culturas e um evento como esse precisa atingir um público cada vez maior”, declarou.

Foto: Tom Correia